Correio da Manhã - Como surgiu a ideia de escrever um romance sobre uma Lisboa pós-apocalíptica?
Patrícia Reis - Queria uma moldura que desse espaço a uma narrativa centrada na memória e, depois, na sobrevivência sem a vertigem de tecnologia em que vivemos. Lisboa é a minha cidade e, por isso, não senti qualquer impulso de escrever sobre outro local. Acredito que a geografia afectiva também importa. Quem lê 'Por Este Mundo Acima' pode assim imaginar alguns espaços da capital em escombros.
- Em 'Por Este Mundo Acima' nunca explica o que destruiu grande parte da cidade e do Mundo. Porquê?
- O cenário de desastre não é central. É um livro sobre pessoas, especialmente sobre a amizade e o que nos liga aos outros. De certa forma, este livro é um legado aos meus filhos e uma homenagem a duas amigas, a Inês Pedrosa e a Maria Manuel Viana. A amizade é a melhor forma de amor e pode ser transformadora. O desastre, nuclear ou não, é apenas um pretexto.
- Pensou muito em como seria a vida sem electricidade, água potável e tudo aquilo que damos por adquirido no dia-a-dia?
- Tentei imaginar como seria regressar a um estado similar ao do século XIV, sem água, esgotos dignos desse nome, electricidade, mas sobretudo sem telemóveis, internet, e-mails, todas estes veículos de comunicação que nos obrigam a estar ligados 24 horas sobre 24 horas. Sobra-nos pouco espaço para cuidar dos outros. Para conversar sem ser interrompido. Para ouvir.
- Criou um mapa do que restaria de Lisboa semidestruída?
- Sim. Confinei a personagem principal a uma zona específica de Lisboa (a Alameda) embora haja incursões por outros espaços, como a praça de Londres ou a avenida da República. Este mapa geográfico da cidade é também o meu, onde me movimento, nasci e vivi. Foi mais fácil escrever sobre espaços que conheço, de certa forma, mas o que o livro relata pode ser deslocado para qualquer outro espaço ou cidade.
- O romance apresenta a relação de um homem mais velho com uma criança que já só conhece o novo Mundo, tal como em 'A Estrada'. Esse livro do escritor norte-americano Cormac McCarthy foi uma inspiração?
- É o único livro de Cormac McCarthy que não li. Acredito que seja distinto, pela sinopse, embora haja outros livros onde a relação homem/criança é explorada. Aqui há duas situações que se opõem e que me interessam relatar: o abuso sexual dentro da família e a relação entre a personagem principal e a criança que encontra, sendo que a mesma representa um redenção e uma possibilidade de futuro de uma forma algo purificadora. A personagem principal é um velho, a quem o miúdo dá alento e a oportunidade para partilhar e transmitir informação através dos livros.
- Na narrativa há referências a bandos mas nunca experenciamos os seus actos de violência. O que a levou a 'poupar' os leitores?
- Interessa-me a ideia de Bem e de Mal e julgo que a mesma está patente nos livros anteriores que escrevi, mas nunca como neste. É evidente que perante um acidente que nos faz regredir não podíamos eliminar o Mal. 'Pedro' tem pensamentos contraditórios sobre isso e há uma cena violenta de agressão a um animal. Logo de imediato, dá-se o arrependimento. Acredito na dimensão bipolar de cada um de nós: somos capazes do Bem e do Mal e isso faz parte da condição humana. Não explorei a violência porque a terceira parte do livro, a que conta a vida de 'Pedro', é sobre as suas contradições e sonhos, mas é ainda muito focada na vida e influência de 'Eduardo', o velho que o cria e lhe dá toda a educação possível num mundo em despojos.
- A personagem principal é um editor e os livros têm uma enorme importância em toda a narrativa. É a forma de deixar claro que os livros podem sobreviver a todos os 'gadgets' electrónicos que os ameaçam?
- Os livros podem ser salvadores e ao mesmo tempo cristalizam o tempo. Se quisermos saber tudo sobre o século XIX, basta ler o Dickens. Se quisermos perceber o Norte de Portugal e as famílias abastadas, lemos Agustina Bessa-Luís. E por aí fora. Os livros resistem a tudo e, ao mesmo tempo, são uma fonte de interrogação e um mapa de tesouro, já que abrem possibilidades e trilhos que talvez nunca tenhamos pensado.
No caso deste livro, há um manuscrito - sobre o qual pouco sabemos - que é central para fazer com que 'Eduardo' parta à procura de um amigo, ciente de que ele estará morto, e por causa dessa saída, dessa ousadia, encontra 'Pedro'. De repente, diz o editor, tem um livro e uma criança. É uma metáfora? Pode ser. Nessa medida, 'Por Este Mundo Acima' é também uma homenagem aos livros e à sua função de salvação e de consciência do tempo...
PERFIL
PATRÍCIA REIS nasceu em 1970 e começou a escrever no semanário ‘Independente' aos 18 anos. Lançou em 2004 o primeiro romance, ‘Cruz das Almas', e não mais parou. É responsável pela revista ‘Egoísta'.
O último livro de Patrícia Reis apaixona. O seu desastre é deste tempo. Mas vem de manso, parece não perturbar, e perturbado está ele: um miúdo caminha ante um velho que o segue, preso à música que ele trauteia. Andam sobre escombros de um vasto desastre, a destruição da cidade, do mundo. Nada se vê nem ninguém: raros foragidos, atacantes, gente que sobrevive oculta. A composição dos capítulos (de 1. a 8., sendo 0., o primeiro, o da devastação) abre vários caminhos, é de andamento que se trata: Eduardo, velho editor, consciência solitária do flagelo, a custo “sobe escadas” (acto simbólico), “faz listas” de coisas para sobreviver (e outras: “sismo/fogo/terramoto/inundação/bomba”), recorda amigos: Sofia, Jaime e Lourenço. Relações profissionais e sexuais; peculiaridades que imergem do quotidiano banal em que todos são idênticos mas únicos. Sofia centra-os: dormira com todos, estimam-na, narra a Eduardo uma relação dúbia (amante de um homem casado que é gay) e, quando ele lhe procura a casa entre os escombros, na Av. Da República, lê um maço de cartas em que ela conta os abusos sexuais que sofreu do próprio pai.
A mansidão da escrita insinua-se para revelar e criticar sem apóstrofes, dando a sentir o que nela se chama o Mal: ameaça e corrosão interior/exterior de desmoronamentos morais e físicos, sofrimento, anulação. Nós e os outros, nós com (fora) os outros. E a história (“como se a arte fosse transformadora do real”, p.156) dá a agreste aventura de quem (se parte) e de quem fica (se fica). Mas um outro por ali (um miúdo que perdera a mãe) é descendente e continuador: Pedro caminha à frente sobre “as rochas” e reconstruirá a comunidade e ressurreição. A comunidade nasce de um livro: um manuscrito que o velho editor só agora lê, e transmite a Pedro que consegue imprimi-lo e difundi-lo e, integrando-o na biblioteca da avó de Eduardo, fomenta o gregarismo cultural e vivencial da nova geração.
Por Este Mundo Acima (D.Quixote, 220 pp, 14,90 euros) diz que a destruição e a necessidade. Do mal, da reconstrução, do entusiasmo. Esforçado sem ser entediante, criativo sem pretensiosismo. Dizem a catástrofe as tensões expressivas (fragmentarismo, alternâncias, mutações de perspectiva, multilinearidade do narrado que não anula a história) e intensificam o discurso. Em que o desastre pouco se deplora (lastimável é visioná-lo!) e se ultrapassa no ritmo das frases que caminham, e fazem da memória matéria de construção. Livro terrível mas reconfortante pelo seu sentido e marca estilística, na história que aflige e cativa sem nunca negligenciar a composição – ou o “coração”.
Jornal de Letras, edição de 15 a 28 de Junho de 2011
Começa assim: "O último romance de PR apaixona". E termina: "Livro terrível mas reconfortante pelo seu sentido e marca estilística, na história que aflige e cativa sem nunca negligenciar a composição - ou o 'coração'." Página 13, o meu número da sorte.
I
“A amizade é um amor transfigurador e potente. É uma arma.”
Pag. 127
Patrícia Reis oferece-nos um livro optimista, onde a amizade é a verdadeira reconstrução num mundo destruído. No seu 6º romance, transporta-nos para um mundo pós apocalipse e arruinado em estruturas e emoções. A sobrevivência é imperiosa e o Homem regride à sua condição de animal.
Nas primeiras páginas, a autora demonstra que existem relações produtivas e explícitas (intertexto) com outros textos. Neste caso, existem relações identificadas com textos de Fausto, «Por este rio acima», e com Brecht, «Do pobre B.B.». Por ser um livro que aborda directamente o papel da literatura na sociedade, existem outras aproximações a outros autores com a subtileza exigida, ou não, pela própria autora. “Por este mundo acima” é um livro que dialoga com a literatura; não é fechado em si mesmo, mas antes abre possibilidades de leituras a outros livros. De outra forma, pode-se afirmar que existe abertura do texto ao pensamento sobre a historicidade e sociedade onde o Homem se insere e influencia.
A narração é sobretudo psicológica e não pude deixar de me lembrar de “Fome” de Knut Hamsun e de “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago (Saramago começa, no entanto, com uma impossibilidade, ao contrário de Patrícia Reis). Assim sendo, a narração ocorre na 1ª pessoa do singular. Esta perspectiva confere uma maior proximidade do leitor ao pensamento do personagem Eduardo (principal narrador). A sua visão sobre as outras personagens será a nossa, também, uma vez que não existe uma entidade omnisciente e concretizada numa 3ª pessoa. No entanto, através da estratégia narrativa de uso de cartas/apontamentos (aqui temos o diferimento da mensagem que abordaremos mais à frente) a autora dá-nos a oportunidade de estarmos mais próximos das emoções e ideias de uma entidade essencial no livro: Sofia. É sobre ela, não exclusivamente mas principalmente, que incide o espírito de tolerância das outras personagens, individualmente e como grupo. É por este meio que descobrimos os acontecimentos da sua vida que influenciaram a sua formação emocional. A aceitação das suas características e o amor que todos sentem por ela é a chave de leitura deste texto. É este tipo de amor que pode levar o Homem à sua salvação. A relação entre eles é de longa data: “ Há mais de trinta e tal anos que falamos das listas do Eduardo” pag.79. E a interdependência emocional é partilhada por todos.
Mais do que um texto musical, construído com frases mais longas interrompidas por frases mais curtas originando mudanças de ritmos, diria que o texto é, sobretudo, fílmico devido à construção de imagens fortes e sugestivas.
A nível temático, o texto relaciona-se com os factores externos (contexto) a si próprio, fundamentando a sua produção, recepção e interpretação em acontecimentos possíveis. Nunca ficamos a saber o que realmente aconteceu. Nem é importante. O que o texto nos transmite é a ruptura com um passado (contexto situacional), um apocalipse que reduz o ser humano à sua essência, ao seu instinto de sobrevivência (universo simbólico).
“O meu corpo estremece. Não o controlo. Vejo as mãos suadas e tento continuar. Sou um animal. Regresso a isso” pag. 126
“É fundamental deixar de pensar” pag.124
Posteriormente, é sobre este movimento niilista que se constrói a salvação, a aceitação e, essencialmente, a elevação do melhor do Homem: A amizade como amor, como dedicação ao próximo em detrimento das próprias necessidades (visão do mundo). Segundo Levinas, o altruísmo, a decisão de colocar o Outro em primeiro lugar pode atenuar o terror da existência. Essa é a nossa transcendência. É esse terror que existe ao longo do livro de Patrícia Reis e é o amor, composto por altruísmo e inclinação para o Outro, que o pode atenuar, sem o derrotar.
II
O homem constrói, permanentemente, narrativas. o Homem constrói um texto narrativo quando fala do seu percurso de vida, da história clínica, ou quando conta algo a alguém. Assim sendo, não pode viver sem a produção e recepção desses mesmos textos. Eduardo tem essa percepção e insiste, permanentemente, em recordar/narrar os acontecimentos passados e, principalmente, dar a conhecer a sua memória, os acontecimentos que o marcaram, a Pedro.
“ Ele fazia lista de livros que era importante circular. Livros luminosos que, não sendo lamechas, nos revelavam a vasta matéria dos sentimentos que definem a condição humana” pag.164
Segundo Aguiar e Silva (1990), « a narratividade encontra-se intimamente correlacionada com o conhecimento que o homem possui e elabora sobre a realidade- o Génesis pode-se considerar, sob esta perspectiva, como a narrativa paradigmática e primordial -, devendo ser sublinhado que lexemas como “narrar”, “narrativa” e “narrador” derivam do vocábulo narro, verbo que significa “ dar a conhecer”, “tornar conhecido”, o quel provém do adjectivo gnarus, que significa “sabedor”, “que conhece”, por sua vez relacionado com o verbo gnosco(pp. 201
A narração é indissociável do tempo. Uma característica interessante de “Por este mundo acima” é o facto de a narração ocorrer no futuro, no espaço de um mundo possível, viajando entre o passado (tempo presente do leitor) e o presente do narrador (tempo futuro do leitor). Entre os vários marcadores temporais que nos fornecem essa informação, além do sistema verbal, há um que pretendo sublinhar: A referência ao próprio livro de Patrícia Reis remete-nos à actualidade e indica que ele narra no futuro. E este aspecto é intrigante porque um texto escrito é uma forma de diferimento da mensagem. Através da escrita pode-se perpetuar, ou pelo menos assegurar a permanência no tempo, da mensagem. O personagem adjectiva o livro de “datado”, isto num diálogo sobre o Facebook , o MSN e o Youtube. Ou seja, podemos utilizar esta referência como “ a leitura do texto”, necessariamente mais próxima desse futuro possível; ou como a “edição do texto”, mais afastado desse futuro apocalíptico.
A narração situada no futuro levanta uma outra característica importante e coerente com a temática de “Por este mundo acima”: A presença do verbo “Ser” no futuro é uma vitória, ainda que escassa e ténue, sobre a morte. E o texto é isso mesmo: uma narração no futuro que encontra os seus alicerces no passado para, com esperança e renovação, continuar a adiar a morte definitiva dos valores culturais do Homem e, por fim, dele próprio.
A morte da memória ou a ignorância invalida a continuação da história. Analise-se a conjugação verbal da seguinte frase: “O homem da gabardina bege terá uma história e eu gostaria que alguém me contasse tudo em pormenor” pág. 93
A probabilidade desce do futuro imperfeito até ao imperfeito do conjuntivo… porque não há ninguém para contar.
III
“Voltámos ao princípio e até temos um livro para nos guiar” pág. 157
A reorganização social começa quando Eduardo encontra uma criança: Pedro. E devido ao poder transformador deste personagem, a autora divide o tempo em antes e depois do apocalipse:
“O caos aconteceu quando ele andava pelos quatro anos de idade, quase cinco. Fizera os 8 há dois meses”. Pag.114
Pedro é um recomeço, é um exemplo de generosidade num mundo destruído pela falta de comida, de água, de higiene e falido de cooperação e altruísmo: “Ele parte outra bolacha em quatro, desajeitado, e oferece-me dois pedaços” Pag. 119
Pedro incentiva Eduardo a quebrar o seu medo de convivência, de partilha de um espaço e diálogo com outros sobreviventes. E assim conhecem Miguel, jornalista, que vagueia pela Península Ibérica transportando notícias. Este personagem, aparentemente secundário, tem um papel importantíssimo na história: Ele é o responsável pela interacção entre os povos, pois é ele que transporta as notícias sobre os outros, os sobreviventes. Miguel é o mensageiro (apóstolo?).
“ A sua vida resume-se a ter estado sozinho, a recolher histórias para depois partilhar. Não criou raízes, não se deixou ficar num qualquer outro lugar. Partiu à procura de algo de melhor que possa, um dia, trazer de volta uma certa ideia de humanidade” pág. 161,162
A reorganização vai-se consolidando. Os anos passaram e com eles veio a capacidade da sociedade se organizar. São mencionados progressos em países distantes.
Pedro descobre as caixas com as recordações escritas de Eduardo. A memória de Eduardo sobrevive, através de várias caixas com textos que foi armazenando desde a infância, na interpretação e na memória de uma criança. A memória individual é transmitida, desta forma, para as mãos e memória individual de Pedro. Mas não chega. Era imperativo a sociedade, que tem a força de uma personagem, manter a sua memória colectiva de forma a não repetir os erros do passado:
“ Decidiram passar a biblioteca da avó de Eduardo para um centro cultural, para estar sempre disponível, para ser a memória de todos” pag.180.
Pedro começa a recriar o alfabeto, primeiro passo para a impressão em papel, e, além do livro de Sebastião, outros livros foram escritos e difundidos pela nova sociedade que emergia dos escombros. Miguel, o jornalista, fala com Eduardo sobre a escrita de um novo manuscrito, uma história sobre o presente, a nobreza, onde a linha do Bem e do Mal se distingue (O Novo Livro/Testamento). A revisão do livro foi a última tarefa de Eduardo.
- O livro como salvação
Na cultura judaico-cristã, como afirma Victor Aguiar e Silva (1990), texto significa obra escrita, o livro, obras religiosas detentoras de autoridade. Na idade média, texto significa a obra do autor, ou seja, obra da pessoa que exerce autoridade. Até ao século XXI, o termo texto não apresenta uma mudança de significado, embora tenha ganhado alguma ambiguidade semântica.
A autoridade emana do livro de Sebastião. É uma obra-prima, segundo Eduardo, e, mais do que isso, é o livro que transporta o passado recente para o futuro. É a continuação temporal, a passagem cultural do que aconteceu antes do acidente. Pedro, já mais velho, é muito céptico em relação a esta hipótese: “Não é um livro orientador, é uma ficção e isso é claro, é uma parábola do tempo em que foi escrito e um achado futurista adequado às circunstâncias» pág. 157
E numa frase simples e ingénua interroga o leitor e o próprio texto: “Voltar ao princípio? Será possível? O que é o princípio?” pag.157
Estamos perante a dúvida a que Steiner, em “Gramáticas da criação”, responde: “Já não temos começos”. Mais: Nas palavras de Pedro, há um reflexo das dúvidas do Homem em relação aos Evangelhos, ao livro orientador e fundador da moral cristã. É no livro de Sebastião, hipotético pilar da refundação social, que incide o debate entre Pedro e Eduardo.
Este livro representa um caminho, individual e/ou colectivo, para o sentimento mais nobre do Ser Humano: Bondade.
“É urgente ensinar a partilhar, Pedro. Para não voltarmos ao mesmo. A Sofia, o Jaime e o Lourenço sabiam o que era bondade. Não por serem bondosos, repara, mas por o saberem distinguir e praticar no dia-a-dia sem se fazerem notar”
Pág. 170
Bibliografia: REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Lopes (2000) “Dicionário de Narratologia”, Coimbra, Almedina, AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de (1990) “Teoria e Metodologias Literárias”, Lisboa, Universidade Aberta.
Mário Rufino
Peregrinação futurista
Quando ouviu as notícias sobre o terramoto e o tsunami no Japão, há poucos meses, o filho de Patrícia Reis disse-lhe: “Mãe, este é o cenário do teu romance”. E não se enganou. É de um recomeço, depois de uma destruição, que se faz Por Este Mundo Acima. A escritora chama-lhe até uma “peregrinação futurista”, na medida em que projeta num futuro ficcionado os desafios que se colocam à Humanidade de hoje. Na sequência de uma catástrofe, Eduardo tenta refazer a vida e as suas memórias. Quebrados os laços com os amigos, é para dentro que olha, enquanto o mundo lá fora prossegue a luta pela sobrevivência. E só em dois tipos de descendência, um filho que adota e um manuscrito que redescobre, conseguirá dar sentido a uma existência no meio do caos. Uma alegoria com a qual a autora de Antes de Ser Feliz e No Silêncio de Deus aborda a eterna luta entre o bem e o mal. Assim como quem escreve uma carta a um filho.
Jornal de Letras: A imagem de uma Lisboa destruída foi o ponto de partida deste romance?
Não. Escrevi este livro para o meu filho mais velho. O meu objetivo era passar-lhe uma mensagem sobre a urgência da partilha e da bondade, abordando também as questões do bem e do mal e dessa coisa maravilhosa que é a amizade.
Como surgiu depois a destruição?
Muitas vezes, é nas situações limite que conseguimos ver verdadeiramente estes valores ou como cada pessoa lida com eles. No entanto, o cenário de um mundo destruído, que eu até nem desenvolvo muito, apenas sugiro, sem descrever os pormenores, é apenas uma moldura, a partir da qual as personagens agem e redefinem as suas prioridades. Sem a vertigem em que vivemos hoje em dia, o que se torna essencial? O que é a condição humana? Tornamo-nos bons só porque houve um desastre? Estas são algumas das perguntas que foram aparecendo ao longo da escrita do livro.
É uma alegoria?
Gosto de pensar que é uma peregrinação futurista. Já depois de ter acabado o romance, li uma frase muito interessante do Albert Einstein. Perguntavam-lhe como seria a III Guerra Mundial. Ele disse que não sabia, mas que tinha a certeza que a IV seria à pedrada. Ou seja, o desafio da sobrevivência está muitas vezes à espreita. Mas o mais importante de tudo isto são as pessoas e a forma como elas se relacionam.
A amizade parece ser um tema que lhe interessa particularmente.
É verdade. A amizade é a melhor forma de amor que existe. Uma forma de partilha única, que não se faz por e-mail ou sms. Implica toque físico e contacto visual. E dedicação.
A escolha de um editor para contar o poder da amizade foi intencional?
Foi. Todos os meus livros têm um velho, o que um psicanalista poderia explicar pela marca que o meu tio-avô deixou em mim. Era um grande leitor e foi ele que me ensinou a ler. Do ponto de vista da história, um velho editor permitiu-me estabelecer uma ligação com os livros, que para mim também era muito importante. Como diz David Lodge, mais do que os tratados ou os compêndios de história e de sociologia, os romances são o melhor reflexo do tempo em que vivemos. Acredito, por isso, que a redenção está nos livros. Nem todas as civilizações são iguais, mas todas, sem exceção, contaram histórias.
No romance, ressalta também o trabalho ao nível da estrutura.
Que surgiu por acaso. Este foi um livro que demorou três anos a ser escrito e reflete também essa indisciplina. Como não vivo dos livros, roubo tempo para escrever. Vou colecionando as histórias na minha cabeça e depois tento pôr cá para fora. A ideia de fragmento surgiu naturalmente e depois foi trabalhada para equilibrar as várias vozes que vão aparecendo, sobretudo a de Eduardo, o editor, e a do Pedro, a criança. Também porque nunca sabemos tudo sobre nós, sobre os nossos pais, os nossos amigos ou namorados. A vida é um conjunto de fragmentos que reunidos sequencialmente dão uma manta de retalhos que pode ter mais ou menos sentido. Como na ficção, a minha vida também é assim.
Dom Quixote, 220 pp, 14,90 euros
Movemo-nos numa noite escura. Os passos frágeis, à flor da escuridão. O ar irrespirável. Sobrevivemos, e não queremos crer nessa possibilidade. À nossa volta o cenário esmagador da realidade, o cenário da destruição extrema. Percebe-se que aconteceu uma catástrofe nuclear a nível global; porém, os pormenores, os detalhes de tal cenário escasseiam. Apenas a geografia familiar completamente esventrada, exposta na sua estranha crueldade, uma crueza esmagadora. A minha leitura é a de que este cenário é apenas isso: um cenário, um pano de fundo, porque esta viagem é essencialmente interna. Os recantos cheios de sombras, a derrocada, os cadáveres dos edifícios, as bocas de esgoto a deitar por fora, o lixo, o cheiros, o arrepio do medo, estão cá dentro, dentro de cada um de nós, dentro de quem sobrevive todos os dias, e nessa busca desesperada volta à dimensão física, animal, da existência. Porque é no corpo e nas suas necessidades que tudo começa e acaba. É o corpo que é real, e, paradoxalmente, só o compreendemos quando o perdemos ou quando ficamos reduzidos a ele.
A luta pela sobrevivência é assim, passo a passo, segundo a segundo, pulsação a pulsação. É um tempo onde nos movemos sem rumo, sem saber a direcção, sem saber nada. E não há ninguém para perguntar o caminho, ao contrário da parábola da existência da boca e da consequente chegada a roma. É um caminho interno e solitário. Uma luta renhida pela lucidez, que começa nos gestos mais banais. E, ao mesmo tempo, o desespero de preservar a memória. Sem ela morremos de facto. Para um sobrevivente, a morte pode ser um consolo, quase um alívio. Para um sobrevivente, cada movimento dói, uma chaga permanente chamada vida. Mas, em lugar de se render ao abraço da morte, da desistência, ele continua em frente, teimoso, raivoso, numa obstinação que tem tanto de desespero como de instintivo. O animal, a fera em acção. A vida, que afinal se conquista, a deitar as garras de fora.
Percebemos, assim, que o mundo está cheio deles. Sobreviventes. Antes ou depois do acidente, pouco importa. Afinal, o acidente apenas veio definir, exteriorizar, uma catástrofe que se desenhava há muito no horizonte, um cataclismo secular, um poço sem fundo, uma tragédia planetária, que sempre nos acompanhou na vida privada. Agora é posta cá fora, no rosto do mundo. Podemos então olhá-la de outros prismas, conhecê-la, interpretá-la. Não com raciocínios, mas com as emoções à flor da pele. Vemos a busca do sentido. Da memória. Dos livros. Os livros que contam estórias e fazem história. As pessoas de outrora, os amigos, pequenos deuses distantes no paraíso de outra vida, que antes de ser outra era o inferno de todos os dias. O preto transforma-se em branco e o branco em cinzento. Todavia, temos mãos, temos tintas e pincéis, que ficaram da outra vida. É só pegar neles e pintar. A criança que se encontra e nos devolve tudo, de uma assentada, tudo aquilo que julgáramos perdido, tudo o que já não acreditávamos ser possível. Com ela vemos o mundo como se fosse a primeira vez; a destruição passa a ser o cenário primeiro, o ponto de partida; e como mostrar o passado, o que foi destruído, como trazê-lo para o presente, como oferecê-lo às novas gerações? E de súbito, percebemos que o cenário mudou. Abriu-se uma porta, apareceu uma luz, não temos a certeza. O cenário ainda são as ruínas; porém, tudo está diferente. As pessoas falam (as mesmas que antes não falavam, e eram apenas sombras passando ao longe), trocam sorrisos e palavras, trocam coisas; coisas simples, pequenos objectos, e coisas maiores, alegrias, tristezas, estados de alma, e juntas descobrem o poder da partilha, de construir algo em comum. Como se fosse a primeira vez. Assistimos ao renascimento do mundo, da vida, como se a vida fosse uma coisa abstracta, exterior, uma língua estrangeira que precisamos de aprender a decifrar. Experimentamos os sentimentos básicos dessa vida, como quem prova colheres tímidas de sabores desconhecidos: o amor, a amizade, a mulher, o homem, uma criança, um filho, a morte, a raiva, a agressividade, a luta, a coragem, a partilha, o egoísmo, a solidão, a solidariedade, a cumplicidade. O medo, esse, é aquele que já conhecemos de cor, de tanto lhe calçar os sapatos e calcorrear os caminhos. O medo, esse animal que se esconde na toca, encolhido, assustado, e que, ao sentir-se encurralado, se pode tornar gregário, primeiro por desespero, por não ter para onde fugir; depois, e ao perceber, pela primeira vez, um medo igualzinho ao seu no rosto estranho que o olha. E assim nasce aquela flor frágil, a esperança.
Poucas foram as vezes em que um livro me deixou sem palavras. Normalmente fecho a última página cheia de vontade de falar, opinar e discutir. “Por Este Mundo Acima” fez-me pensar em tantas coisas enquanto o li, mas não me permitiu ter uma opinião imediata. Se calhar é um livro a digerir com calma, eu sinto que ainda o estou a “mastigar”.
Difícil é imaginar no que se pode tornar a nossa vida após uma catástrofe. Neste livro é-nos descrito o mundo depois de um “acidente” do qual nunca sabemos pormenores, apenas sabemos que tudo está destruído, que a maioria das pessoas desapareceu, e as que restam procuram caminhos. Caminhos que são percursos do passado, vividos de lembranças e pensamentos, e modos de viver o presente.
Pode parecer estranho mas este livro sugere-me uma palavra: “Tempo”. O tempo que perdemos nas nossas vidas sempre a correr, e o tempo que sobra, com o qual não sabemos lidar nem como preencher quando tudo muda.
Eduardo foi editor e agora vagueia pelos destroços deste mundo desfeito. Procura alimentos, medita sobre todas as coisas que se perderam, na vida que viveu, no carinho dos amigos ausentes. E porque quem procura acaba sempre por encontrar, descobre pistas do passado das pessoas que conheceu, das suas vidas ocultas, das coisas que nunca imaginou porque se calhar nunca olhou para os outros sem ser na correria dos percursos que se cruzam, muitas vezes por acaso. Porque sabemos que nas nossas vidas pouco tempo temos para nós e para os outros, vivemos a pensar no que temos para fazer e no pouco tempo que temos para fazer tudo o que queremos ou nos é imposto. Será preciso uma tragédia para termos tempo para pensar? Para meditar sobre o que perdemos? Será uma lição? Aprender a ter tempo? Aprender a viver verdadeiramente? Concluir que habitamos um planeta super-povoado mas não conhecemos verdadeiramente ninguém?
Nesta fase de desolação Eduardo descobre “O Livro”! Aquele que nunca editou mas que é o melhor de sempre, o que deveria ter chegado a toda a gente. Curiosamente um livro que esteve muito tempo consigo mas que ainda não tinha lido, e agora? Será tarde demais?
Gostei da relação que se desenvolve entre Eduardo e Pedro, um rapazinho que cresce neste cenário de destruição, a quem Eduardo ensina, orienta, pode dizer-se que, dadas as circunstâncias, educa. Passam-se anos assim, tantos que me questiono porque não se reconstruiu tudo? Porque continuam as personagens deste livro a errar no vazio sem sinais de recuperação? Que é feito do poder de recuperação do ser humano?
Bom, um livro que me faz pensar e que me acompanha depois de o ter terminado (mesmo já tendo iniciado outro). Gostei de me deixar levar pela (imensa) criatividade da autora, viajei e vivi nesse lugar, seja lá onde for.
Sem dúvida um ponto de partida para conhecer os restantes trabalhos de Patrícia Reis. Bastante recomendado! Marcante!
Sinopse
“Um cenário de terrível desastre assola Lisboa. Poderia ser em qualquer outro lugar do mundo. Os escombros passam a ser paisagem, a cidade e as relações humanas transformam-se vertiginosamente. Entre os sobreviventes há um homem, um velho editor. Procurando amigos e amores desaparecidos encontra um manuscrito e um rapaz e, neles, a porta para uma outra dimensão da vida.”
Dom Quixote, 2011
Entregar um livro ao público é como levar o filho à escola pela primeira vez: o miúdo já sem fraldas mas ainda com o boneco e, por vezes, a fralda de pano. Fica pendurado na professora e à mercê de uma mão cheia de desconhecidos. Um livro novo, depois de mais de três anos de trabalho, torna-se estrangeiro para quem o escreve, é um território que pode ser lido, interpretado, amado ou odiado. Por quem conhecemos e por todos os outros, potenciais leitores, sem rosto, sem referências que nos confortam.
A seguir, a pergunta central é a de saber: depois de “Por este Mundo Acima” que vou escrever? Devo escolher outro trilho? E será isso uma boa ideia ou pode prejudicar todos os frutos recolhidos? Se escrever é condição e não profissão, uma necessidade ou terapia, para tantos, é ainda um exercício de algum masoquismo, porque nos expomos e não temos certeza de nada. Há, de certa forma, um regresso à insegurança infantil de não se ter a certeza, até porque quando temos a certeza somos apelidados de “convencidos” ou “arrogantes”.
Na Festa da Literatura no Funchal em finais de Maio, primeira edição da responsabilidade dos Booktailors, alguém disse: “Podia ser só uma mulher gira”. Outra presunção? Certamente. Quem é que quer ser apenas uma mulher gira? Ou um homem? Ou até uma criança? Desejamos sempre que a beleza venha de mão dada com a inteligência e o sentido de humor, prática pouco exercitada por estas bandas onde dizer mal é mais fácil do que dizer bem; por isso festejar o sucesso do outro é, desculpem dizer, uma enorme maçada. Como a beleza alheia. Mesmo que a beleza seja de uma tristeza infinita.
Eu encontro beleza nos livros e por isso leio e releio. Gosto de ter amigos que são escritores e outros que não estão sequer interessados em saber o nome do próximo ou anterior Prémio Nobel. Na multiplicidade é que está o ganho. Mesmo que não seja giro.
O novo livro da escritora e jornalista Patrícia Reis – ‘Por Este Mundo Acima’ – “coloca em cheque” a forma como nos relacionamos actualmente em sociedade. “Vivemos num mundo demasiado virtual e não damos valor às relações humanas”, referiu a autora ao Expressões Lusitanas.
Daniel Pinto Lopes
O livro é dedicado ao filho mais velho da escritora (Sebastião) para lhe explicar o “básico”, que são as “outras pessoas e a amizade”, num cenário longe das inovações tecnológicas e da “vertigem absoluta” dos telemóveis, das mensagens escritas e dos ‘e-mails’.
“É um livro contra a corrente, porque não é uma história de amor ou semelhante. É sobre pessoas e é sobre estas que eu sei escrever”, indicou Patrícia Reis ao Expressões Lusitanas.
O processo de escrita do livro demorou três anos e sete meses. A autora justifica o hiato temporal pelo facto de não ser “escritora de profissão”. “Nem sequer acredito nisso. Apenas tenho vontade e necessito de escrever. É uma forma de terapia”, explicou.
A narrativa de ‘Por Este Mundo Acima’ coloca os seus personagens perante uma catástrofe/acidente nuclear. Os sobreviventes serão sujeitos a um “ambiente básico” e de “sobrevivência”, sem acesso a qualquer tipo de tecnologia e no qual se consegue distinguir o “essencial” do “acessório”. “É totalmente o oposto do mundo em que vivemos”, detalha.
‘Por Este Mundo Acima’ “põe em cheque” a forma como nos relacionamos. “O livro põe a nu o facto de não partilharmos com os outros aquilo que devíamos partilhar”, observou.
A apresentação da nova obra decorreu esta segunda-feira, 23, na livraria Barata, em Lisboa, e contou com a presença de várias personalidades da literatura, como Lídia Jorge, José Eduardo Agualusa, José Luís Peixoto, Inês Pedrosa, entre outras. Na plateia esteve também o ministro dos Assuntos Parlamentares. “Jorge Lacão é um leitor, gosta dos livros e respeita os escritores, independentemente das suas ideologias políticas”, esclarece Patrícia Reis ao Expressões Lusitanas.
Ao escritor valter hugo mãe [nome artístico escreve-se com letra minúscula] coube estar ao lado de autora na mesa de apresentação, a fim de dar a sua perspectiva sobre a nova obra. “O livro solicita ao leitor que transforme as relações em algo de prioritário e pretende sensibilizar para um relacionamento menos virtual”, apontou.
A edição de ‘Por Este Mundo Acima’ é da Dom Quixote.
Palavras da Anabela Mota Ribeiro:
Patrícia Reis dedicou a Por Este Mundo Acima três anos da sua escrita. A Cidade de Ulisses marca o regresso de Teolinda Gersão, 14 anos depois. São universos distintos. São duas gerações. São livros que entreabrem a porta para os mundos das duas escritoras. Conversa na Bertrand do Chiado, no próximo dia 2 de Junho, às 18.30.
Ler no Chiado é uma iniciativa da revista Ler e da Bertrand, com moderação de Anabela Mota Ribeiro
por Maria João Caetano<input ... >Hoje
Escritora apresenta novo romance hoje, segunda-feira, às 18.30, na livraria Leya Barata, em Lisboa.
Patrícia Reis não gosta de lançamentos de livros. Apesar disso, na próxima segunda-feira, a jornalista, editora e escritora vai lançar o seu novo romance "Por este mundo acima" (Dom Quixote). A sessão acontece na livraria Barata, em Lisboa, e conta com a apresentação de valter hugo mãe. "Um lançamento serve para validar a obra, porque há sempre alguém que a apresenta. Ora a obra ou vale por si ou não vale. Não estou de todo a desvalorizar o papel que o valter irá fazer mas na verdade é assim: o livro está aqui, ou é bom ou não é bom, ou gostam ou não gostam. Preferencialmente que gostem e que comprem." Não podia ser mais directa, pois não?
A sinceridade é uma das características de Patrícia Reis, autora de obras como 'Morder-te o coração' (2007) ou 'Antes de ser feliz' (2009), mas pensa que teve de chegar aos 40 anos para começar a assumi-la sem receios. "Não quero ser uma salsicha Nobre, não preciso que todos gostem de mim. Faço o melhor que posso e sei e isso é muito melhor do que o que faz a maioria das pessoas. Podem acusar-me de falsa de modéstia à vontade", desafia. Na sua perspectiva, este "é só mais um livro". Poderá não ser o melhor livro do mundo mas é o melhor que Patrícia Reis conseguiu fazer neste momento, depois de se ter empenhado honestamente na escrita durante três anos e sete meses. "Escrevo para partilhar histórias com as pessoas. Isto não é uma corrida, ninguém ganha. A literatura não é uma competição." E acrescenta: "A posteridade não me interessa. Eu escrevo para as pessoas de hoje. Esta é a minha opção."
E foi precisamente a pensar no momento em que vivemos, "na vertigem do consumismo, individualismo, montra de vaidades do facebook, dos e-mails rápidos, dos sms que não têm tom, nem voz, nem toque nem contacto visual", que Patrícia Reis quis "voltar ao básico" e falar das relações entre as pessoas. E já agora contar as histórias de algumas dessas pessoas. "Isso é o que me interessa", confessa.
A acção de 'Por este mundo acima' decorre em Lisboa, após um acidente/guerra nuclear. Não se diz muito sobre o que aconteceu, o importante é que, sem electricidade, sem combustível e sem água canalizada, os poucos sobreviventes têm que viver quase como na Idade Média. E a sociedade reconstrói-se a partir de memórias difusas de uns e de outros e dos livros, esses sobreviventes, que não precisam de tecnologia para existir. Nas palavras da autora: "Perguntaram a Albert Einstein se ele sabia como seria a terceira guerra mundial e ele respondeu que não fazia ideia mas que a quarta seria certamente à pedrada. Isto não é isso, não é esse o tema do livro. É um cenário catastrófico mas é só o pretexto para voltarmos a falar daquilo que é básico, que é o bem e o mal, o ser-se bom ou ser-se mau, a memória que temos ou não das coisas e sobretudo a importância extrema da amizade. Porque no limite é a melhor forma de amor".
"Por este mundo acima" será apresentado por valter hugo mãe. eu serei aquela rapariga a fingir que não é nada com ela.
O meu terceiro filho
Ter um filho é ter o coração fora do corpo e, muitas vezes, escrever um livro é associado a esta ideia de maternidade. Ontem chegou um livro novo à feira do livro e hoje estará nas livrarias. Foi o meu terceiro filho (os outros são mesmo de carne e osso) durante três anos e muitos meses. Escrevi e reescrevi. Deixei de molho como o bacalhau. Vi com algumas amigas. Voltei atrás e à frente.
Escrevi, desde o início, para deixar uma mensagem ao meu filho mais velho e, em resumo, a ideia é que vivemos numa vertigem terrível onde a tecnologia predomina, onde os valores humanos se podem perder. Ser amigo por sms não é o mesmo que abraçar um amigo, digo tantas vezes. Mas a vida e o tempo atropela-nos e, curiosamente, parece que não dominamos a vida que queremos ter. Estamos sempre atrasados, temos emails para responder, mandamos mensagens com abreviaturas e esquecemo-nos de dizer todos os dias: Como estás? Amo-te. Estás triste? O que precisas?
Por Este Mundo Acima é, então, uma peregrinação futurista em Lisboa, levando-nos aos valores mais básicos de sobrevivência e a todos os que nos definem como seres humanos. Num cenário de destruição, que é apenas a moldura que serve de pretexto para contar a história, um velho editor interroga-se: como sobreviveu? Para quê? Recorda a sua vida, os amigos, a força de algumas ideias, os traumas e os segredos. Por fim, a redenção chega através de um manuscrito e de uma criança. A tecnologia é inexistente. Regressámos ao século XIV, mas os valores: o certo e o errado, o bem e o mal, esses, continuam e prevalecem. Somos solidários com os nossos filhos em tudo, até nos disparates. Com um livro a diferença é apenas uma: este novo livro é mais um que acrescentamos ao caminho da escrita e isso reflecte quem e o que somos de momento. Sem pretensões.
StartSelection:0000000199 EndSelection:0000003063
Por este Mundo Acima é uma peregrinação futurista. Uma visão estranha de um Lisboa destruída após um acidente. Um sobrevivente, velho, interroga-se sobre a sua existência. Revive os momento bons, recorda os amigos, volta atrás numa viagem nostálgica que se torna um instrumento para se manter vivo. Não é um romance sobre uma destruição e o retrocesso da Humanidade, sobre a perda da tecnologia e as dificuldades inerentes. É a história de vida de um homem – Eduardo - que , em tempos, foi uma figura importante do mundo da cultura. O que importa dizer aos leitores? Que é um romance sobre a memória, sobre a amizade, a ideia do Bem e do Mal e, depois, da redenção. No exercício da memória, Eduardo redescobre os amigos, consegue vê-los numa outra perspectiva. Em casa de um deles - sabendo à partida que não voltarão a encontrar-se - encontra segredos e coisas inesperadas. A amizade também é isso: dizer o que se pode; guardar o que talvez não faça falta para se ser compreendido.
Ao fim de três anos de sobrevivência, Eduardo descobre um manuscrito que, por mero acaso, ficara perdido na mesa de trabalho e é o livro que lhe dá alento para enfrentar o mundo. É preciso imprimir, é preciso divulgar, é preciso entender o livro como uma forma superior de co-existir. Enquanto procura um dos amigos, aquele que acredita ser capaz de o ajudar a reproduzir o original, Eduardo sabe que as probabilidades de sucesso são escassas. Apesar disso faz um esforço para atravessar a cidade, os restos da cidade. Encontra um miúdo com oito anos, Pedro. Toda a sua vida se transforma e ganha outra dimensão. Tem um livro novo e uma criança que leva para casa.
A vida de Pedro é-nos relatada por um narrador ausente, sendo a terceira parte do livro. Eduardo encontra uma razão de viver em Pedro e ensina-lhe tudo o que consegue ensinar, obrigando-o a ler uma biblioteca maravilhosa, a biblioteca que herdou da avó. Pedro cresce e consegue construir uma oficina de impressão: o original que Eduardo encontrou ganha vida, por fim. A Humanidade compõe-se aos solavancos. Uma certa ideia de Humanidade, numa cidade onde todo o mal pode vir do céu. A maldade? Sim, as chuvas ácidas, o desconhecimento, o desligar do resto do mundo por falta de comunicações. A bondade? É inerente a quem ama, mesmo àqueles que aprendem tarde como demonstrar esse amor.
Por Este Mundo Acima
Entrevista Ana Mesquita (www.anamesquitaveryown.blogspot.com)
Desde quando te lembras que começaste a escrever?
Não me lembro de não escrever. E lembro-me distintamente que a escrita sempre esteve relacionada com dois sons: a música e o barulho da máquina de escrever que o meu tio-avô me deu para as mãos. Comecei aos sete a fazer histórias curtas. Pela adolescência tive uma paixão fulminante por Mário de Sá-Carneiro e umas tentativas (muito más!) pela poesia. Coisas da idade. Sempre disse que seria escritora. Escolhi o jornalismo como profissão para conseguir conciliar a escrita com uma certa sustentabilidade financeira. Ninguém – ou poucos – vivem exclusivamente da escrita.
Onde gostas de escrever? Em casa? À mão? No PC?
Hoje escrevo sempre no computador e tenho pânico sempre que algo acontece, como aqueles mistérios informáticos que fazem com que o ecrã apareça às riscas (já me aconteceu por duas vezes). Guardo tudo numa memória externa. Gosto de escrever em casa e preciso sempre de música para o fazer. O meu sítio ideal – peço desculpa se vos parecer inconveniente ou pouco sério, embora se façam coisas muito sérias neste local – é na cama. Existem fotografias minhas, com sete ou oito anos, que mostram como eu escrevia então: exactamente na mesma posição que assumo hoje, as mesmas almofadas, o mesmo cenário. Nunca mudei, afinal.
Respiravas se não escrevesses?
Sim. Não respirava se me tirassem a capacidade de ler ou ouvir histórias. Eu gosto de ouvir e gosto muito de ler alto. É uma tradição que se perde com o crescimento dos filhos e que, curiosamente, tenho conseguido manter até agora, tendo o meu filho mais novo onze anos. Há livros que lê sozinho, outros que lemos os dois, ou seja, eu leio, ele ouve. Sempre de uma forma muito atenta. Uma coisa é certa, possa embora parecer um cliché, não é possível escrever sem se ler e ler muito e muitas vezes fora do que nos é mais agradável, da chamada zona de conforto.
Como é dirigir a Egoísta há mais de dez anos?
O primeiro pensamento é: com uma grande dose de loucura aliada a uma inesperada organização. A Egoísta é, porventura, um dos meus projectos mais importantes do ponto de vista profissional. É, ao mesmo tempo, um desafio permanente, sem nunca se ter perdido de vista a ideia de que é um veículo de comunicação do Grupo Estoril Sol e que aposta forte nas curtas ficções e nos portfolios de artistas que, de outra forma, não tinham onde publicar. Quando começámos, vai fazer 11 anos, o facto de ser uma publicação temática pareceu, a muitos, como algo quase patético, sem hipóteses. Hoje em dia há uma série de revistas que são temáticas, até revistas de órgãos de comunicação social. Não deixa de ter graça termos feito “escola” e que existam alguns alunos universitários que se têm mostrado interessados e elaborado teses sobre a Egoísta.
Quais foram as edições que mais gozo te deram?
Todas as edições dão um prazer único e a próxima, aquela que irá, por princípio, superar a anterior tem algo de mais empolgante. Ao fim deste tempo todo é complicado escolher uma ou outra como preferida, sinceramente. Há temas maravilhosos que deram resultados surpreendentes, como é a edição sobre Deus ou até sobre Sexo. O mais importante é conseguir ser inovador na revista seguinte. Isso é essencial e, muitas vezes, muito complicado.
Estás a lançar um livro visceral porque tem a ver um filho. A escrita é sempre fruto de paixão, ou então não vibra?
A escrita é uma paixão. Na verdade, a vida também o deve ser e se a encararmos assim teremos tendência a viver um pouco melhor. Este livro foi escrito para o meu filho mais velho, o Sebastião, por ser uma história sobre a importância extrema da amizade, o bem e o mal. Acredito que são valores que temos de passar às novas gerações.
Do que é que te esqueces quando estás a escrever?
Do meu marido, se for sincera. Ele pouco se importa porque gosta de me ver escrever e até me empurra a isso. É capaz de me dizer: vai escrever, é o que precisas. Também me esqueço das horas e de comer.
Qual é a tua palavra preferida?
Reciprocidade, porque sou pouco dada ao individualismo e ao egoísmo, embora me fizesse bem ter algumas doses destas duas características de tempos a tempos.
O piropo que mais gostas de ouvir?
O meu filho mais novo manda-me sms a dizer: gosta tanta ti, mãe. É uma formulação amorosa caseira, digamos.
Um intelectual pode ser vaidoso, arranjar-se, e ver-se ao espelho? Ou isso é olhado com alguma desconfiança?
Um intelectual pode ser um top model! Ser intelectual é o quê? Alguém que pensa, que tem mundo, que lê, que reflecte? Tudo isso não significa que não se tome nota da nossa imagem. A imagem é uma projecção também do que somos. Se nos considerarem menos por termos atenção ao que vestimos então há aí também uma forma de discriminação e preconceito. Só podemos ter talento, por exemplo, literário, se sofrermos, formos eremitas, vestirmos de forma disciplicente? Julgo que essa noção já se perdeu e ainda bem.
Tens medo de alguém?
Das pessoas em geral. De multidões. Da maldade das pessoas. Das pessoas que estão em lugares que lhes permitem ferir seja quem for. Pessoas que não me conhecem, por exemplo, e tecem comentários, que dizem mal pelo puro prazer da maldade. Somos um povo que não é educado na ideia de festejar o outro, de se alegrar com o êxito alheio. Há uma mesquinhez que depois leva a outras múltiplas maldicências que me metem medo. Combato este medo - embora a palavra medo talvez seja excessiva - cultivando uma certa indiferença na certeza de que o gosto, tal como a amizade, é selectivo. Há ainda outro aspecto que é a idade. Quando se é muito novo queremos pertencer uma tribo, ter uma matilha. Queremos, no fundo, que gostem de nós. Com a idade, aprendemos que é fantástico existirem pessoas que gostam de nós e que as outras só têm a importância que lhes quisermos dar.
Com quem nunca irias para uma ilha deserta?
Sozinha.
Se pudesses juntar em casa, à mesa, seis grandes escritores, vivos ou ressuscitados, quem seriam?
Vergílio Ferreira, Machado de Assis, Clarice Lispector, Eça de Queiróz, Agustina Bessa-Luís e Inês Pedrosa.
O que servirias?
Gaspacho alentejano para começar com peixinhos fritos, queijo e azeitonas, vinho tinto.
O que faz rir?
Poucas coisas me fazem rir. Nunca fui uma pessoa de riso fácil. Há um actor dos anos 50 que tem esse poder sobre mim, Danny Kaye. De resto, nem com os Gato Fedorento ou anteriores. O riso chega-me através das pessoas com quem partilho a vida, pelos apartes que fazemos – vicentinos ou não – e que dão uma certa cor ao meu dia.
O que farias por amor?
Morreria por amor.