Domingo, 23 de Novembro de 2008
Foi uma aventura em Amesterdão. O Ricardo Adolfo fez de cicerone. O meu marido andou às voltas até encontrar o hotel onde Chet Baker se suicidou. As putas nas montras eram loiras, morenas, gordas e magras. O porteiro da sex shop tinha um ar simpático e o brown café onde nos sentámos disponha de uma juke box. Foi aí que surgiu Martina, a prostituta que salva Manuel Guerra, que lhe devolve a bondade e um certo sentido de humanidade, de se ser da forma correcta. Martina é um misto de coisas e de pessoas. A viagem a Amesterdão foi essencial para decidir que ali Manuel Guerra estaria em casa. Nunca lá tinha estado. Dois anos antes, Agustina Bessa-Luís e Inês Pedrosa tinham o projecto de visitar a cidade para ver a Ronda Noite, quadro que serviu de pretexto ao último romance de Agustina. Era suposto ir também, numa trindade de portugalidade que se adivinhava cómica e enriquecedora. Não chegámos a ir. Agustina adoeceu entretanto e, talvez por isso, Manuel Guerra fale dela e do quadro. Martina gosta de Rembrandt mas não tem qualquer fascínio especial pela Ronda da Noite. Manuel Guerra regressa ao museu e compra-lhe um casa de cartão a imitar as casa de oitocentos. Ter um amigo é construir uma casa. O pai de Sara diz-lhe isso uma vez. Manuel Guerra é quem acaba por valorizar o sentido da amizade, esse sentimento transformador e extraordinário.
Terça-feira, 18 de Novembro de 2008
Ana Luísa, mulher de Manuel Guerra, fez-se com a junção de peças que, quem sabe?, alguns podem decifrar com facilidade. É uma mistura da minha mãe e de outras mulheres da família. É um garante de estabilidade na vida de Manuel Guerra. Ela que se atormenta com o crescimento do filho, com a falta de partilha do marido, com as suas circunstâncias e, depois, com a vida que lhe escapa na falência do corpo para o cancro. Não é uma personagem principal, é como um corrimão que acompanha a narrativa de Manuel Guerra, contudo é única e o escritor regressa sempre a ela, à ideia dela.
Quarta-feira, 12 de Novembro de 2008
Para escrever Sara foi importante ir a Israel. Não é o país que se vê na CNN. É uma surpresa, é arrebatador e, ao mesmo tempo, estranhamente familiar. Jerusalém tem o poder de ser um lugar fundador e o mistério das coisas que não se explicam. Sara cresceu aí como personagem, beneficiando da amizade de Nathan e Raya Cohen que vivem em Nahariya, depois de Haifa. É uma cidade pequena fundada por judeus alemães. Para se chegar à praia é precisar atravessar as pequenas cancelas e pagar pelo privilégio de nos banharmos no mediterrâneo. Aprendi muito em Israel.
O segundo capítulo de livro é a viagem de Sara a Israel. Vai resgatar uma herança de família e, pela primeira vez em muito tempo, confronta-se com os seus fantasmas, receios e dúvidas. Sara é jornalista. Preza-se por ter um plano e, de repente, compreende que o falhou por completo: não sabe quem é, para onde vai. Viajar por Israel não a leva a nenhuma conclusão e é isso mesmo que, já em Amesterdão, Sara partilhará com Manuel Guerra.
Segunda-feira, 10 de Novembro de 2008
Perguntam-me coisas específicas sobre Manuel Guerra. Se é alto, se anda de gabardina, se tem o cabelo branco. Não tenho imagem concreta para oferecer, para apaziguar os mais curiosos. Pode ser tudo isso e mais. A única certeza é que é um homem marcado no rosto pelo silêncio que se impôs, que tem um olhar difícil de segurar, que tem nele uma maldade que está no corpo e que passa para o papel. É um escritor, qualquer escritor. Torna-se melhor quando decidi deixar de escrever. Limita-se a viver, a observar, a pequenos gestos diários, de rotina, de sobrevivência. E, às vezes, apenas num gesto pode estar outra ideia, um futuro qualquer, uma redenção.
Quinta-feira, 6 de Novembro de 2008
Escrever o Manuel Guerra, dar-lhe espessura e acabamento devido, procurar um registo de verosimilhança que aproxime o leitor do personagem, foi uma tarefa árdua. Antes de começar a escrever torno-me uma coleccionadora de pedaços de coisas, observações do dia a dia, pormenores, gestos, ambientes. É quase como compor um portfolio fotográfico na minha cabeça e, quando está cheio, tenho a necessidade física de me sentar e escrever. Faço-o com rapidez. Um rapidez algo estranha, dizem-me. Depois posso regressar à leitura e eliminar tudo o que fiz, mas há um processo vertiginoso de passar as ideias para o papel. Para construir o Manuel Guerra andei meses a pescar pequenas partes que podiam ser dele até chegar, por fim, a um molde que deu este escritor, um escritor que carrega a dualidade da maldade e da bondade, que pode dar tudo ou nada. Durante os longos meses de escrita do livro, sonhei muitas vezes com o personagem. Fazia parte de mim. Qualquer coisa - das eleições americanas ao lançamento de um novo livro - passou a estar relacionada com as potenciais reacções ou pensamentos de Manuel Guerra. Assumo uma certa esquizofrenia, se se quiser: viver a vida do dia a dia e viver em paralelo com um personagem de ficção. Há algo de estranho nisto. Depois de ter terminado o livro, levei muito tempo a libertar-me de Manuel Guerra. Passei uma temporada longa sem escrever nada de novo. Não queria, não quero, que esta personagem contamine as restantes que possam existir no futuro.
Quarta-feira, 5 de Novembro de 2008
O personagem principal de "No Silêncio de Deus" é um escritor. Julian Barnes, no seu livro "O papagaio de Flaubert", diz que há profissões que devemos evitar na construção de personagens, uma delas é a de escritor. Lamento muito, mas não concordo. O personagem chama-se Manuel Guerra. Não é nenhum escritor em especial, é um conjunto de ideias que tenho sobre grandes escritores, sobre o seu isolamento, a sua dor. Escrever é muito difícil, diz Lobo Antunes. Manuel Guerra concordaria.
Engravidei deste personagem depois de um jantar com um grande amigo, José Manuel Mendes, também ele escritor, poeta, professor, antigo deputado... Lembro-me com nitidez de termos jantado cedo num dos seus poisos e, já na rua, ter ficado a pensar na delicadeza de gestos, na forma carinhosa como ouve o outro.
Manuel Guerra surge assim.