Terça-feira, 30 de Dezembro de 2008
Romance fascinante, de extrema habilidade na construção e na escrita e muito rico na criação das personagens, da sua interioridade. Denso e original.
Duas vidas se cruzam por duas vezes, a da jornalista, Sara, à procura do mundo e de si e excelente no seu trabalho de descoberta dos outros, e o escritor Manuel Guerra, que ela entrevista em Lisboa e reencontra mas tarde, já canceroso, em Amesterdão. Primeiro o duelo de palavras e atitudes, da segunda vez a compreensão dele, reconfortante.
Num longo flash-bak Sara remomora para Manuel a sua visita a Israel, às suas raízes e é uma visão fina e profunda do país de Ben Gurion em guerra permanente, das suas muito diversas gentes e locais desde o muro das lamentações e à Via Sacra, ao mar Morto, aos montes Golan. Retratos de impressionante veracidade, juízos de uma europeia progressista de origem judaica, episódios de viagem, nostalgias, remorso. Quase uma descarga psicanalítica, com a “absolvição” afectuosa do escritor.
Nessa altura já Manuel Guerra está a morrer lentamente, a deixar-se morrer, em Amesterdão e também ele, em várias e doloridas analepses, invoca sua mulher falecida, que tanto o amou, Ana Luísa, e seu filho Rodrigo, que se afastou de um pai, ausente na sua escrita em todas as circunstâncias. E é então que o talento de Patrícia Reis nos descreve a existência insólita do ex-escritor, agora incógnito espectador da vida que decorre na zona de prostituição de Amesterdão, entre os amigos dos seus últimos dias, Martina, uma prostituta inteligente e generosa que o apoia, um barman excêntrico, a sua empregada africana, um médico homeopata. E o final do romance é subitamente um esplendor.
Urbano Tavares Rodrigues, 2008